sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Devaneios 1


Muitas coisas me instigam, porém não sou capaz de dissertá-las, de certo que não é por medo, mas por não ter uma linha de raciocínio sólida... ou pela memória que me falha. 

Pensando bem, já não tenho uma boa memória, ultimamente tenho esquecido muitas coisas. Esqueço-me, por exemplo, da funcionalidade do cigarro, por minutos observo-o em uma de minhas mãos até recordar-me que preciso acendê-lo e tragá-lo. Assim se dá com a masturbação. Já não sei qual é sua funcionalidade. Oras, falar de sexo!

Sentei-me dia desses na beira da praia, ao lado da esfinge de Clarisse, aquela estátua de bronze, fria, sombria, hermética me olhava e me dizia: "Coragem, Carlos. Coragem!". Maldição, como ela sabia do meu pseudônimo espiritual? Dizem que esse é o primeiro sinal da loucura, ouvir espíritos. Bom... estou em vantagem, eu ouvi a esfinge de Lispector, pior mesmo era Olavo Bilac que ouvia estrelas.

Sempre acreditei que havia uma linha tênue entre a razão e a loucura, acho que por isso Sartre criou aquela personagem tão estúpida como o Daniel. Digo, estúpido, eu ou Daniel?

- Não te apoquente Carlos. - Disse-me uma vez Drummond - Pois há uma pedra no meio do caminho.

"O que ele quis dizer?", penso eu. Não sei, não sei! Comecei a ter umas ideias para a semana de arte moderna. Penso, pois, em uma arte revolucionária, pessoas nuas, fotos, jornais, quadros de orifícios, genitais, jornais, jornais, tetas, mídia, mídia... Pois bem, quero que toda a imprensa registre o pensamento clássico de que o homem é um animal domesticado. Um animal completamente indefeso. 

- Vejam, vejam, companheiros, essa é a notícia que se dará: - Pessoas nuas invadem a "Via Láctea" homens, mulheres, crianças, todos ao mundo como ao mundo vieram!

Malditos vaga-lumes que me incendeiam os candelabros do juízo, já não me recordo o motivo de estar dizendo essas coisas. - Eu? Eu estou fumando sossegadamente meu Marboro frente ao mercadão da Lapa de baixo. Observando um empresário gritar: "Água, Água geladinha e fresquinha freguesa...". Como essa gente do mundo dos negócios é ímpar. Ele passa, eu passo... Mas os motores ficam em meus ouvidos, "Acorda Carlos, que no meio do caminho, ao meio do dia, há uma pedra".

Dona Lara é enfermeira aqui no hospital de reabilitação do juízo. Está a me convidar: - Levanta, Rodrigo, vamos tomar banho de sol - ela me trata como se eu fosse criança. Mas vejam, senhores, o filósofo dizia: "Os olhos são as candeias do corpo", como pode um olho bom ter a mente sem juízo? - Pois, pois, eu vos digo senhores, "Nós somos sóbrios, tão sóbrios quanto aos insanos fora deste trem em que me encontro, pois somos capazes de dar a luz a uma estrela cintilante", agora, eu, Carlos, vou tomar sol na janela do trem e olhar os pés de jacarandá até chegar à estação.

Do amor que me veio

Há flores no caminho,
Tantas quanto se pode imaginar,
É primavera e o amor chegou
De frauda e asa quebrada,
Nem alto e nem baixo,
Nem gordo e nem magro,
Não muito feio, não muito bonito,
O amor não olha essas coisas
O amor apenas... apenas se dá.

É primavera
O amor caiu sobre o meu telhado
e rolou telha a baixo até minha janela.
Infeliz, tinha o peito nú.
Chegou na hora do chá,
Se fica para o almoço não se sabe.

Pequenino, pequenino,
Pequenino é o meu amor
Que paira sobre a flor da paineira
Em frente minha janela,
Ao almoço, da cozinha o vejo,
Gorjeia meu sabiá, e o menino ri!
Ah, que riso gostoso,
É o riso do amor,

É primavera
Na porta de casa, na porta do bar...
Olho pela vidraça do carro,
PA-RA-LE-LE-PI-PE-DO
Digo ao pensar no amor que me veio
O pequeno anjinho me espia
Num tom sério finjo que não o vejo
PA-RAA-LE-LE-PI-PE-DOOO...?
Um sorriso imenso brota do vasinho de orquídea
Foi ali que o danadinho se escondeu.

O amor,
Sem rima, sem métrica e sem forma,
Um amor reverso ao parnasiano,
Reverso ao simbólico e ao moderno
Um amor romântico se me veio,
Pois é primavera...  é primavera e o meu amor dorme
Dorme dentro do vaso de orquídea
que agora jaz despetalado.


sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Fora de ordem

"Ei meu amor
A noite chegou
O dia acabou
E o que vai ser?

O fogo queima a lenha
A colher gira na xícara
A mosca cutuca a aranha
A aranha deglute o rato

Ei meu amor
O dinheiro acabou
A fome apertou
E o que vai ser?

Silêncio entre a mobilha
"Tenho fome" geme o fogão
O gato atrás da moita
A boca cospe o pão.

Ei meu amor
A fome apertou
A noite chegou
O dinheiro acabou
E o que vai ser?

A xícara esfola o pires
O fogão engole a lenha
O garfo espeta a ervilha
A aranha deglute o rato".

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Dama de Paus

Ao filho que não nasceu
E o sorriso que não dei
Deixo o meu legado
Dama de Paus.

Ao filho que não veio
Quero que saiba
Que meu corpo rola do alto do morro
E mais uma travesti,
Só mais uma travesti
dá a luz ao seu rebento.

Dama de Paus,
de pau na virilha
Dona de um baralho mudo
Dona do tarô do mundo
Irreverente, militante, preta
Gostosa, e não se engane: Mulher.

Este é o legado que amamenta
no bico de teu seio:
Dama de Paus,
Zumbi, Anastácia, Dandara
Mãe Beata, Tia Ciata, Rafael Braga.

Sangue, Axé, Pinho Sol
É o que traz em suas ancas
É o que traz para lavar a terra.
Não se engane, meu amigo,
Dama de Paus, é a mulher do fim do mundo.



Perdoo-te Deus
Perdoo-te por sua ausência
E também por beberes mais do que eu
Tu és o meu desejo
E eu o desejo de tua existência.
És tu órfão como eu,
Nasceste de mãe sem pai
E se perdeu no caminho da Vida.

Perdoo-te pelo pão e pelo vinho
Pela água e pela uva
Que vós mesmo abandonaste
Chegou a seca no sertão do Cariri
Meu gado morreu
Devido a guerra e a seca
Retirou-se o povo do sertão do Ceará
Ai de Juazeiro! Ai de Paraíba!

Me perdoe Deus
Escute minha prece:
Olhe pro cerrado, olhe pra Ananais
Meu Padim Ciço,
Rogue a virgem santíssima por nóis
Bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus.

Eu te perdoo Deus,
Te perdoo pela seca, pela sede
Pela morte,
Todo dia é dia de seca, de morte, de fome...
Te perdoo por levar minha gente pra arar a terra
Da fazenda do menino Jesus de Praga

Te abençoo Deus pelo pão que não comeu
Pelo vinho que não bebeu
Pela sede inconstante de minha constância.

Te perdoo Deus,
Como não perdoar-te se somos um?
Eu me perdoo Deus
Me perdoo pelos milagres que não fiz,
Pelo choro que não sequei
Me perdoo por não ser como tu
Me perdoo por ser Deus.